Se tinha um valor imprescindível aos religiosos, esse valor era a castidade. Nada a poderia abalar. Do contrário, abríamos o corpo à influência diabólica, e um corpo vulnerável precede um espírito vulnerável. O pecado de um cidadão era uma falta, o de um devoto, um crime.
A luxúria constituía o maior perigo porque o mais irresistível. Não tínhamos posses, então a avareza não era um problema. Depois de algum tempo, nos acostumávamos às refeições frugais e a gula deixava de ser grande tentação. Sem mais o que fazer, trabalhar era a melhor alternativa, espantando a preguiça.
Entretanto, nada impedia a luxúria. Por quase mil anos a teologia buscou uma solução para esse obstáculo. Da proibição absoluta, aos eunucos, passando pelo incentivo, até enfim chegarmos à prática da santa amizade. Um rigoroso código de cortejo, modos de se relacionar e mesmo de se referir aos companheiros. Direcionar o sentimento e o realizar segundo os preceitos da castidade. Funcionava há pelo menos três gerações.
— Não! Não! – uma nova manhã, um novo despertar com gritos.
Alguém sempre gritava.
A pobre da Maria Helena foi carregada por suas colegas para a confessora. Talvez ela precisasse mais de um exorcista. Na noite anterior, a Filipa caíra no meio da missa, contorcendo-se, boca espumando, e falando palavras desconhecidas, potencialmente demoníacas. Foi um espetáculo tétrico. Pelo menos uma dúzia de outras seminaristas afirmou sentir espasmos assustadores após testemunhar a cena.
— Isso está saindo do controle... – murmurou a madre Carmen, enquanto aguardávamos a nossa vez de confessar.
— Como? – perguntei, aproximando-me sutilmente dela.
— Vocês! Vocês todas precisam de mais oração, de mais mortificação – olhou-nos de modo severo, embora eu desconfiasse que estava mais preocupada do que irritada conosco — Por muito tempo fomos tolerantes com as suas displicências! Um pãozinho extra aqui, uma tarefa mal executada ali, um leve atraso para as missas, uma escapulida do trabalho. Acham que o Inimigo não repara? Pois lembrem-se: Ele nunca dorme. E o Altíssimo também jamais dorme!
— E eu também, faz dias que não durmo – cochichou Maria Teresa, numa careta.
— O que disse? – a simples pergunta da madre era já uma repreensão — Talvez vocês precisem de mais trabalho, mais jejum, mais orações!
— Senhora madre, por favor, se comermos ainda menos, como trabalharemos? – resmunguei. As tonturas se tornaram parte do meu cotidiano.
— O único alimento de que necessitam é a fé – antes que pudéssemos retrucar, Maria Helena saiu, murcha, olhos fixos no chão, ombros arriados, cabelos desgrenhados, e chamaram a próxima — Ponha uma touca, menina! — gritou a madre, e a moça foi correndo para o quarto.
Dois meses desde o princípio dos pesadelos e eu contava nos dedos as boas noites de sono. Não era a única, certamente. Por mais que nos esforçássemos, aos poucos as insônias e os pânicos afetaram nossa rotina. Dormitava durante os terços, perdendo sempre a conta das ave-marias. Levava o dobro do tempo para limpar um simples castiçal. Esquecia-me do que fazer em seguida. Regava a mesma planta duas vezes. E ainda podia me considerar afortunada. A Beatriz, por exemplo, começara a ver demônios em plena luz do dia.
— Eles me espreitam, Heloísa. Em cada canto, ao fim de cada corredor, atrás de mim, sempre há um demônio prestes a me atacar. Eu fico exausta de tanto expulsá-los – seus olhos debruados de manchas escuras se arregalavam, ela encarava fixamente um ponto além, como se não me visse — mas uma hora, uma hora eu vou cansar. E nessa hora eles me vão me possuir...
— Tem certeza, Beatriz? Estamos num dos lugares mais santos de todo o mundo. Nenhum demônio ousaria por os pés aqui. Acho que nem conseguiria.
— Ah, mas eles conseguem! – sua voz era baixa e ela falava rápido. Talvez temesse que as criaturas infernais a ouvissem — Eles são infinitos, estão por toda parte, no ar, na água, nas plantas, não tem onde se esconder. Eu já tentei. Eles te acham! – virou-se para trás num átimo, prendeu a respiração — Preciso ir!
Seu andar era estranho. Arrastava os pés lentamente, do modo mais silencioso possível. Caminhava na diagonal, parava, esperava alguns segundos, e seguia. Olhava sobre os ombros, a mão tampando a boca. Dava mais três passos. Nesse ritmo levaria horas para chegar ao próximo cômodo.
Houve quem, como a Ester, se viu transitar pelo seminário enquanto dormia. E, como ela, amarrava-se à cama durante a noite. O medo crescia, tornava-se palpável.
— Soube que a feiticeira não colabora com a inquisição – disse-me Antoinette a certa altura. Creio que foi após uma missa.
— Ela não responde às perguntas?
— Ela não diz nada. Como se a boca estivesse costurada. Dizem que é feitiço. Um dos poderosos, porque ainda não o desfizeram.
— E olha que nós temos sacerdotes muito bons nisso.
— É o que me incomoda – ajeitou o véu na cabeça — Heloísa, não acha toda essa incompetência um pouco estranha? Os expedicionários mortos, os interrogatórios, a aparente tranquilidade dos bispos e do Cardeal em relação aos pesadelos. Sabe quantos morreram na última expedição? Trinta e oito guerreiros e seis padres. Nossas maiores perdas em mais de quinze anos. Eu vi os registros – Antoinette tinha o curioso hábito de falar sem nos olhar diretamente. Era como se pensasse em voz alta — Mas veja, partiram de Sacramento duzentos e cinquenta guerreiros e quarenta sacerdotes, mais os comandantes. Retornaram somente cento e setenta guerreiros e trinta e seis sacerdotes, contando os mortos. Onde estaria o restante?
— E eu que sei? É possível que tenham morrido e seus corpos não puderam ser resgatados.
— Uma tremenda insensibilidade do Cardeal, então. Nem os mencionar na missa da vitória. A menos que...
— Estejam vivos?
— Desaparecidos. Ou desertados. Ou continuam combatendo.
— Posso perguntar a Guilherme, quando o vir. Ele provavelmente terá uma explicação.
— Não creio que Guilherme poderá te responder.
Fazia tempo que eu não me encontrava com ele. Uma das medidas para conter os sonhos foi restringir as visitas ao máximo. E, desde aquele pesadelo, eu não me sentia confortável na sua presença. A habitual alegria dera lugar a uma terrível apreensão, um embrulho no estômago, suores repentinos. Era bom estar com ele, mas de um jeito que eu desconhecia, e por isso temia.
Da sua parte, informava-me pouco. Dissera que os exorcistas só agiam por determinação de pelo menos um dos bispos e ninguém os mandara intervir nas supostas possessões. Tudo era secreto demais, confuso demais. Eu não conseguia nem prestar atenção nas aulas, quanto mais compreender as inescrutáveis decisões do Cardeal e seu conselho. Empregava todas as minhas forças para resistir às tentações, cada vez mais insistentes.
Quando nos vimos da última vez, tentei me aproximar.
— Espero que todo esse trabalho não o esteja desgastando em demasia – disse a pretexto de contornar-lhe o rosto com os dedos. Sentia a mão formigar ao contato da pele.
— Já suportei pressões piores. Não se esqueça de que sou um guerreiro do espírito – ele respondeu, a voz suave, acolhedora.
Da ponta do queixo passei aos cabelos encaracolados. Estavam úmidos, provavelmente do orvalho, gotículas escorrendo pela minha palma, descendo até os pulsos. Ele reagia aos meus movimentos com leves arrepios, que me divertiam e hipnotizavam. Tive o impulso de segurar-lhe a nuca, puxá-lo para junto de mim e...
E o quê, Heloísa?
Não pensava com clareza, a vista coberta de um vapor morno, os lábios que teimavam em ressecar, obrigando-me a lambê-los com frequência.
O peso da falta de sono, os relatos assombrosos, as suspeitas, o medo, tudo se avolumava sobre mim de uma forma quase intolerável. Tinha vontade de gritar, de correr, de me mortificar. O convento parecia cada vez mais convidativo, um destino de silêncio.
Despedi-me às pressas, prestes a correr, sem olhar para trás. Ele me tomaria por doida, mas isso era melhor do que a outra opção.
Procurei refúgio na torre da Catedral, munida de papel e tinta, disposta a registrar alguns dos sonhos que as seminaristas me haviam contado, e alguns dos meus próprios. Queria organizar, colocar as histórias diante de mim, contribuir para a solução do problema. Comecei pela Maria Helena, que dissera ter sonhado com um grande lago, escuro e fundo. Caminhava em direção às águas. Porém, como nas Escrituras, andava sobre elas, movida pela fé. Logo era tomada de uma enorme alegria, sentia-se agraciada pelo Espírito Santo, confiante de que fazia o correto para uma vida de santidade. Até um braço projetar-se e puxar-lhe as pernas. Sufocava, não por causa da água, mas por algo interior, um ardor impossível. Virava-se, não sabia com que força, e via um homem belo que a enlaçava num aperto vigoroso. Perdia o ar; cedia, por vontade própria, àquele abraço, ansiando o atrito, o formato do corpo se desenhando junto ao seu, ombros, tronco, pernas, pescoço. Há muito se fora o hábito, o véu eram seus cabelos flutuando livres, e afundava. Imergia no lago e no homem. E o queria. E o desejava. E o possuía. E o relato não era mais da Maria Helena. Era meu.
Corri escadaria abaixo, direto para o seminário, para o quarto, à espera da noite e dos sonhos que viriam.
