Se machucar
Intencionalmente
AVISO: Esse texto é sobre automutilação. Se você for sensível ao tema, recomendo evitar a leitura.
Houve um dia em que decidi cortar meu pulso. Era uma gilete velha e eu não sabia o que estava fazendo. Já tinha deixado a adolescência para trás, acreditava que esse tipo de coisa não acontecia depois dos dezesseis. Senti a ardência, a mancha vermelha. Constatei, triste, que não seria a primeira vez.
Confesso que não faço muita ideia de como escrever sobre isso, pois até hoje só três ou quatro pessoas sabiam. Existe um silêncio, um peso, no acontecimento que dificulta a articulação em palavras. Porém, quanto mais o tempo passa, mais o fato vai caindo numa espécie de irrealidade que me dá medo. Será que foi verdade? Olho para a cicatriz no punho esquerdo e sei que foi. Ela não vai sumir tão cedo, acho que nunca. Mas ainda é insuficiente. É preciso linguagem para dizer.
O nome em português assusta: automutilação. É errado, ao menos impreciso. O corpo, em geral, permanece com todos os membros, todos os dedos, até algo novo, uma marca. Mas a questão em si está no “auto”, neste prefixo que muda tudo. Outro jeito é dizer “se machucar”, com ênfase no pronome reflexivo “se”, indicativo de que o sujeito é agente e paciente da ação. Ou ainda, “machucar a si mesmo, machucar a si mesma”. Todo o espanto gira em torno desse detalhe. Por quê?
Foram meses, não sei contar quantos, que passei me cortando. Não havia aí qualquer satisfação, como a que a gente tem fazendo coisas que sabemos ser prejudiciais: beber, fumar, comer em excesso. O que tinha era, no máximo, a sensação de um contato mais próximo com meu próprio corpo. Uma espécie tortuosa de autocuidado. Pegar o algodão, molhar no álcool, colocar sobre as feridas, guardar tudo, esconder as cicatrizes, usar mangas longas, pulseiras grossas, ter um segredo. Mas por quê?
Eu queria ser capaz de refletir sobre automutilação a partir da experiência que tive. No entanto, dois medo me acompanham e travam a escrita: 1 – romantizar, de alguma forma, essa prática que é tudo menos desejável; 2 – passar informações errôneas devido à falta de conhecimento técnico.
Primeiro, se cortar, ou se queimar, ou se espetar, ou se negar a comer, ou mesmo se forçar a tomar banhos gelados em dias frios, não são atitudes saudáveis, plausíveis ou aceitáveis. Podem, sim, ser justificáveis, mas isso não significa que devam ser, nem sequer remotamente, normalizadas. Digo isso, com a desconfiança de estar afirmando o óbvio, porque me deparei na internet com conteúdos perigosos, irresponsáveis e capazes de influenciar as pessoas a fazerem coisas muito prejudiciais. Quando você está predisposto a mergulhar no buraco, uma simples imagem em preto e branco pode ser o bastante. Depois fica difícil sair, cada vez mais.
Segundo, eu não sou nem de longe um especialista no assunto. Parto da minha vivência, com tudo o que ela tem de única e compartilhável, para falar disso. Assim, os meus motivos podem não ser os seus, e o que funcionou para mim pode não funcionar para você. Apesar dessa ignorância assumida, eu quero abordar esse tema, por mim e por quem mais tenha passado pela situação. Então, sem eufemismos, reducionismos ou romantizações.
Eu sempre tive problemas com meu corpo, de autoimagem mas sobretudo de não me sentir “encaixado” nele. Quando criança, certos tecidos, certas roupas ativavam uma resposta quase imediata de repulsa. Eu queria sair da minha pele, arrancar o que me fazia sentir daquele jeito. Às vezes eu sentia uma profunda vergonha não de mostrar o corpo, mas simplesmente de tê-lo. Eu queria ser invisível, intangível. Conforme crescia, acabei pendendo para escolhas de vestimenta que caminhassem nessa direção: camisas sem estampa, calças simples, sapatos discretos, tudo que pudesse me camuflar na multidão.
O mesmo valia para o meu cabelo. Sendo uma pessoa cacheada/crespa, o esperado seria ou alisar ou raspar. Como homem, alisar não era o mais comum. Assim, vivi a infância toda e quase a adolescência inteira com cabelo bem curto. Embora não gostasse dele assim, me conformava porque era mais uma forma de não chamar atenção. (Depois que o deixei crescer, comecei a ser notado na rua por pessoas aleatórias).
Por mais que a gente deseje, não temos como fugir de nós mesmos, exceto por meios muito paliativos e duvidosos. A combinação querer ser invisível + não me reconhecer no meu próprio corpo cobrou seu preço. Eu me via com a necessidade crescente de me expressar através da minha aparência e o medo enraizado de ser visto, especialmente de ser visto “da maneira errada”. Desse modo, a forma de “autoexpressão” que encontrei foi das piores possíveis. Me cortar se tornou um jeito de recuperar a minha própria “consistência”, de sentir que eu não era transparente.
Por isso que disse mais acima que havia um autocuidado tortuoso nisso. Eram momentos reservados para mim, em que eu encarava a minha corporalidade, em que não evitava me olhar no espelho, pelo contrário. Nesses momentos, eu buscava me ver, reenquadrar essa imagem deslocada que existia publicamente.
Hannah Arendt diz que a dor é a única coisa capaz de nos tirar do mundo. Quando sentimos dor, sobretudo uma dor intensa, nada mais importa. Uma professora de teoria literária, lá do começo da faculdade, disse certa vez que a dor nos lembra de que temos corpo. Ela nos tira desse estado de semissuspensão dos sentidos físicos, nos traz de volta para a terra.
De certa maneira, tudo isso estava em jogo quando eu me machucava. Havia uma conscientização da minha concretude. Ao mesmo tempo, tinha um quê de catarse, um exercício de liberdade. Poder se infligir feridas não deixa de ser um ato da vontade, por mais distorcido que pareça. Eu me obrigava a perguntar “o que está acontecendo comigo? por que eu sou assim? como vai ser daqui para frente?”
Parar com essa prática, antes que ela fosse longe demais, exigiu um esforço de outra ordem. Não se tratava de mudança de hábito, pensamento positivo ou coisa assim. Foi, na verdade, um confronto. Antes de tudo, eu precisei visualizar quem eu queria ser, a pessoa que me faria sentir “encaixado” no corpo. E isso envolvia lutar contra uma série de condicionamentos e expectativas construídas socialmente, no meu entorno. Depois, precisava equacionar esse eu interior com a sua expressão externa. Era imperativo que me vissem, e me vissem de outra forma, como eu desejava ser visto. Os cortes, no fundo, ainda eram um modo de me esconder, ainda eram um jeito de manter a invisibilidade pública.
Falei muito de autoestima ao longo dos meus quatro anos de terapia. Aos poucos fui notando como a rejeição social, o sentimento de desajuste e a dificuldade em lidar com as inseguranças influíram nesse processo autodestrutivo. No final, os machucados eram sintomas, um jeito extremo de eu perceber que estava chegando a um ponto intolerável.
Estou há sete anos sem recaídas. Acreditei que estava superado, era uma coisa do passado, uma loucura de momento. Daí inclusive a impressão de irrealidade em volta de todo o caso. Porém, faz uns meses que vi um filme, bem ruim por sinal, cuja protagonista se machucava. E ele me deu gatilho. E eu notei que nada está resolvido cem por cento. É um trabalho contínuo, um dia após o outro.
Eu queria terminar esse texto dizendo que encontrei caminhos não-prejudiciais de sentir dor: fiz tatuagens, coloquei piercings, doei sangue. Seriam maneiras “positivas” de automutilação. Quando decidi escrever, cheguei à conclusão de que estava errado. Não existe um jeito positivo de se machucar. As dores da tatuagem, do piercing ou da coleta de sangue não são fins em si mesmos, são meios de se obter qualidades positivas: expressão artística, afirmação política, exercício de cidadania.
Se hoje eu gosto de tatuagens e piercings, não é porque desloquei a dor dos cortes em algo produtivo, é porque finalmente estou me encaixando no corpo que quero ter, que quero ser. Esse eu não quer ser invisível, pelo contrário, quer ver e ser visto, deixar uma impressão e se fazer testemunho, de muitas coisas, de sobrevivência também.
